quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Uma Vez Mais

Osvaldo Coggiola

Circula, no âmbito docente da FFLCH, mas já transcendido para a grande imprensa, um manifesto relativo à situação da faculdade no contexto da crise da USP. Ele está (ou estava, na última versão à que tive acesso) assinado por 154 docentes da casa. O número destes, na ativa, é de pouco mais de 460; se incluirmos os aposentados que cumprem funções docentes esse número de eleva para 580, aproximadamente. Ou seja, o manifesto representa a posição de algo entre 25% e 33% do corpo docente, percentual mais do que significativo. Qualitativamente, representa bastante mais do que isso.

O que atualmente acontece na FFLCH é parte inseparável, obviamente, do que acontece na USP e, além dela, do que está acontecendo no país desde o último mês de junho. Certamente, a situação da faculdade é passível de análises e posicionamentos específicos, conquanto não ignorem o contexto geral. A nota referida se refere ao “movimento político legítimo do corpo discente”, imediatamente qualificado, no âmbito da FFLCH, pelo uso de “métodos de coerção inaceitáveis e inapropriados ao convívio universitário”. A Folha de S. Paulo resumiu livre (e tendenciosamente) o conteúdo do documento nas suas “críticas ácidas à forma como as lideranças do movimento estudantil, ligadas a grupos ultraesquerdistas, têm conduzido a mobilização por eleições diretas do futuro reitor da universidade”, ampliando essa qualificação para o conjunto do movimento estudantil, não apenas àquele da FFLCH, no que, como veremos, não lhe falta razão (ao seu modo). Querendo ou não, portanto, o documento ultrapassa objetivamente o âmbito da faculdade. Ele condena “métodos de ação como ‘cadeiraços’, barricadas e piquetes, que impedem o livre acesso às salas de aula e o diálogo entre professores e estudantes”, nada dizendo, por exemplo, sobre a ocupação da Reitoria.

O contexto da atual crise, nacional, estadual e uspiano; histórico e conjuntural (ou “político”); é vital para a compreensão da forma do movimento. Cabe, portanto, em primeiro lugar, interrogar-se sobre a procedência do método consistente em proclamar a legitimidade objetiva do movimento e, simultaneamente, sua ilegitimidade formal; proclamar a validade de seus objetivos e a invalidade de seus métodos. Poderiam se considerar, nessa seara, movimentos “ilegítimos” em seus objetivos (por exemplo, o nazi-fascismo racista e genocida), mas perfeitamente civilizados (ou “legítimos”) nos seus métodos: o fascismo real, não aquele imaginário, soube se mostrar (iludindo mais de um), perfeitamente respeitoso da ordem institucional, quando isso lhe foi necessário. Muita tinta correu, desde então, acerca da legitimidade democrática de instituições em cujo seio cresceu tranquila e alegremente a negação monstruosa da humanidade.

A atual crise da USP é a mais grave dos últimos trinta anos, pelo menos. Suas raízes institucionais (apenas elas) são claras e explícitas. No último quarto de século, a USP situou-se consciente e propositalmente fora do âmbito legal demarcado pela Constituição Federal de 1988 e sua LDB, que prevê a gestão democrática das instituições de ensino, e estabelece pautas normativas para a gestão das instituições universitárias públicas. As raízes políticas da crise estão mais em baixo. Suas raízes sociais, mas em baixo ainda. De docentes da FFLCH se espera, em princípio, que sejam especialmente sensíveis a estas duas últimas dimensões.

Cada tentativa (bem ou mal sucedida) de aproximar sequer um pouco à USP da legislação vigente provocou crises mais ou menos graves (lembrar, por exemplo, a ameaça de professores titulares da Escola Politécnica e da Faculdade de Medicina de separar, tornar independentes, suas faculdades da USP, caso fosse ampliada a constituição do Conselho Universitário, na década de 1980, pouco antes da proclamação da atual Constituição). Certamente, é possível e legítimo defender na e para a USP uma ordem institucional diversa daquela legalmente vigente no âmbito federal, baseada exclusivamente num critério meritocrático (ou hiper-meritocrático), sob duas condições: a) Proclamá-lo explicitamente; b) Propor mudar a legislação vigente (não apenas para a USP, mas também para as mais de cem instituições de ensino superior público do país) ou, alternativamente, propor tornar a USP independente da República Federativa do Brasil - Estado de São Paulo incluído - sem acesso, portanto, aos recursos públicos até o presente auferidos na condição de instituição autárquica das entidades estatais supramencionadas.

Quanto às raízes políticas imediatas da atual crise, elas se vinculam claramente aos recentes movimentos sociais, os maiores, em extensão social e geográfica, da história do país, pautados, entre outras coisas e em primeiríssimo plano, pela questão do direcionamento e gestão pública (transparente e democrática) dos recursos públicos. As características da atual crise, incluídos os métodos usados pelo movimento estudantil para lhe dar resposta, resultaram do agravamento dos componentes históricos e estruturais, políticos e conjunturais, e até éticos e morais, da crise institucional da USP. O documento aqui comentado condena “as derivas autoritárias e truculentas de uma parcela nem sempre representativa dos alunos”, como uma espécie de característica histórica e específica do movimento estudantil da FFLCH.

Ora, no momento de redigir estas linhas, chegou-me, graças aos bons ofícios de um dos colegas signatários do manifesto, declaração de uma parcela também significativa dos docentes do Instituto de Física, condenando “membros do corpo discente que bloqueiam passagens e portas de salas de aula com carteiras amontoadas (...) atitude (que) configura uma tentativa de imposição de um pensamento de desrespeito e intolerância frente a opiniões contrárias... Protestos, manifestações, aglomerações, reivindicações, entre outros, são normais e saudáveis num local onde há pluralidade de pensamentos. Isso não pode, no entanto, servir de justificativa a atos de coerção, de imposição, de impedimento do direito de escolha dos membros da comunidade”. Não sei (e não julgo) o que está acontecendo no Instituto de Física (ou em outras unidades), mas percebo que nossos alunos andaram fazendo escola (parte de nossos docentes também). 

Na verdade, o conteúdo do documento comentado se resume nas suas primeiras três palavras, “uma vez mais”. “Uma vez mais” um movimento estudantil, “uma vez mais” truculência estudantil não representativa, “uma vez mais” instituições uspianas “pouco permeáveis às aspirações coletivas” (e muito permeáveis, em perfeita consonância entre objetivos e métodos, ao uso da Polícia Militar para resolver seus problemas de escassa permeabilidade, prévia ação legal de reintegração de posse, claro). Tudo como dantes no quartel de Abrantes, “uma vez mais”.

Só que, desta vez, “uma vez menos”, o juiz não concedeu a reintegração; “uma vez menos” a Reitoria teve que nomear uma comissão de negociação (em 2002, quando da greve da FFLCH por contratação de docentes, a Reitoria passou meses sem querer negociar nada, com comissão ou sem ela; foi graças a um truculento ato-passeata que rodeou autoritariamente a Reitoria que foram finalmente abertos 130 concursos, que permitiram o ingresso de 130 docentes, boa parte dos quais, como no melhor [ou pior] tango, aparecem ora como assinantes do supostamente antiautoritário documento em tela, não assinado por nenhum dos docentes oradores ou organizadores daquela coercitiva jornada) e “uma vez menos” os estudantes “sérios” (da Física, de São Carlos – matemáticas et al – da EACH, etc.) acham que o convencimento não pode se limitar a palavras (escritas ou ditas), mas implica também ação. Não fomos nós que lhes ensinamos isso?

Há, no movimento de ocupantes e afins, grupelhos, não “ultraesquerdistas”, mas simplesmente (perdão) escrotos, que usam os estudantes como carne de canhão de interesses mesquinhos, ou lúmpens que depredam ou roubam o patrimônio público? Sim, e não “uma vez mais”, mas cada vez menos (percentualmente). Vamos falar disso com os estudantes (eu o fiz, na Reitoria ocupada, a convite deles). Vamos ser professores, não só entre as quatro paredes das salas de aula, mas em toda parte: é o que nos pedem os estudantes.

Tem coisa nova, não só “uma vez mais”. Inclusive o documento aqui comentado. Só assinado por docentes, nenhum estudante, nenhum funcionário (cuja assinatura não se buscou). Enveredando pelo caminho, não do autoritarismo (uso indevido da autoridade, com qualquer fim), mas do corporativismo (palavra de triste passado e de abusivo, mas não menos real presente). Docentes vs. Estudantes. O documento nada diz que não tenha sido dito ao longo dos últimos, digamos, quinze anos; mas não o diz “uma vez mais”, o faz em forma de documento com muitas assinaturas. Ele próprio é um sintoma de que não estamos diante de “uma vez mais”.

A FFLCH, seus docentes, tem, ou deveria ter, a função de estar à frente e em cima de seu tempo. Para isso nós somos, nem sempre o conseguimos. Na Congregação em que votamos estatuinte e diretas para reitor, estivemos em cima e à frente da USP. Com esse documento ficamos, sem meias palavras, atrás e em baixo.

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